Cortina digital…

Acho interessante notar a nossa capacidade de desenvolver múltiplas personalidades. Em função dessas personalidades distintas, acabamos desenvolvendo comportamentos que buscam nos “beneficiar” de acordo com o contexto em que estamos vivendo. Eu ainda preciso entender se há algum estudo na Psicologia Evolucionista que mostra onde exatamente começamos a desenvolver tal habilidade, mas o fato é que hoje, no contexto de ambientes virtuais digitais, tenho a impressão de que estamos ficando ainda mais elaborados nesse processo de desenvolvimento de personalidades.

Essa Cortina Digital, sob a qual ficamos “protegidos” nos permite criar uma espécie de entidade, ou para usar o termo correto nesse mundo: Avatares, com personalidades completamente diferentes das nossas e comportamentos que não ousaríamos desempenhar em um ambiente físico normal, se é que o ambiente físico em que vivemos hoje em dia pode ser chamado de normal.

Eu trabalho em modelo de Home Office faz muito tempo, já fui chamado inclusive de Matusalém do Home Office. Então durante esse tempo todo, de certa forma, pude observar muitos comportamentos diferentes no ambiente de trabalho. Uma coisa eu tenho certeza, as pessoas tendem a ser mais frias umas com as outras em uma relação por mensagem assíncrona do que quando desenvolvem uma comunicação por voz síncrona, sendo ainda mais empáticas quando ativamos imagens mesmo em interações digitais. Quando vamos para o face a face, essa relação assume o ápice da conexão e da empatia.

Essa semana eu passei por um exemplo muito interessante no trabalho. Já não bastasse o uso excessivo da comunicação assíncrona por mensagem, agora precisamos conviver com as comunicações através de emails impessoais. Impessoais no sentido de que não sabemos quem está por trás do email. Me refiro aos emails do tipo cobranca@, faturamento@, suporte@, vendas@, etc… Muitas vezes quando recebemos respostas desses emails não sabemos quem está escrevendo. Algo do tipo: Assinado, Suporte! Agora falamos com entidades, hahahaha.

No exemplo desta semana, quando notei que a pessoa estava pouco se importando para o meu problema, não tive dúvidas, escrevi assim: “Imagino que não esteja falando com a entidade Cobrança! Por favor, quem é a pessoa que está por trás desse email?” Não é de se surpreender que a conversa mudou daí para frente. A resposta que recebi foi mais ou menos assim: “Olá, André. Como posso lhe ajudar. Aqui é Fulano de Tal.” Bom, resolvemos o que precisava ser resolvido sem maiores problemas daí para frente.

Mas o que me preocupa mesmo não é o uso abusivo da cortina digital no trabalho. Podemos nos adaptar de tal forma a buscar assertividade na comunicação para resolução de problemas práticos nesses meios. O que me preocupa é quando esse “hábito” do trabalho se estende para as nossas relações interpessoais do círculo mais próximo, me refiro a amigos e família.

Estas cortinas digitais possuem dois problemas: o primeiro é que desenvolvemos comportamentos atrás das teclas de nossos dispositivos que não faríamos pessoalmente. Somos, às vezes, mais agressivos e indiferentes nessas situações. O segundo é um problema de comunicação, de codificação e decodificação da informação. Podemos incorrer em erros de expressão quando escrevemos, assim como podemos entender incorretamente quando lemos. É muito ruim colocar relações do círculo próximo sob este risco. Um dia vai dar ruim!

Imagina você tentar resolver um problema sobre o inventário da sua família com seu irmão por mensagem? Não vai acabar bem… Ou se você teve um imprevisto e precisa desmarcar uma pizza com o seu melhor amigo e decide fazer friamente por mensagem? É provável que seu amigo se sinta desconsiderado.

Infelizmente, não sou otimista sobre o futuro em relação a isso. Me parece que o hábito está se tornando tão enraizado no nosso comportamento que acabamos por desaprender a falar por telefone ou sair para tomar um café com um familiar, um amigo, ou um colega de trabalho. Preferimos digitar ou gravar audios que são normalmente escutados na velocidade 2x. É triste! Isso sem contar nos Avatares que criamos no Instragam para representar uma vida que não existe na verdade. Mas isso é papo para outro post…